terça-feira, 26 de maio de 2009

Bob Marley latiu e foi para o céu

Atendo um grambel não muito agradável de meu pai (aliás, quando não se mora com os pais e se recebe deles uma ligação, a tendência é que pelo menos em 50% dos casos a notícia não seja agradável): o Bob Marley acabou de morrer.

Explico antes que alguém pense que meu pai esteja maluco ou que eu tenha me enganado e feito uma confusão com um dos maiores ícones do reggae interplanetário. O Bob Marley que morreu, embora tivesse os olhos vermelhos, não é idolatrado, nem tocado nas picapes ou aparelhos de CDs do mundo inteiro. O Bob Marley que morreu é um cachorro que tenho (tinha) há mais de 16 anos (um basset hound) comprado do amigo artista plástico Jorginho Marques e que, com a idade nas alturas, não conseguiu segurar as pontas: morreu. Como dizem os mais descolados, numa adaptação canina: bateu as patas às 16h35 do último sábado.

Bob Marley (o meu finado) nunca tocou, cantou ou encheu de vil metal as cornuncópias dos barões do mercado fonográfico. Conquistou o nome sob a influência do cantor jamaicano, a quem ele, com certeza, nunca ouviu. O Bob Marley tinha os olhos vermelhos (uma das caracteríticas da raça basset), andava sempre de quatro (com as unhas por fazer, mais riponga impossível) e mal dava conta de subir (pular) nas pernas do seu dono.

Quando chegava à casa do meu pai, lá vinha o Bob (anônimo) com o latido rouco (atrás dele, o espoleta e ceguinho Wily Alves da Silva, um outro cachorro, um pintcher, que tenho) para cumprimentar seu dono na ausência, às vezes semestral, de quem ignorava a sua existência. Juro que não ignorava! Bob Marley nunca deixou de pular e dar o latido rouco, gutural, como se estivesse me censurando por ter ficado tanto tempo sem vê-los (meu pai, Willy e ele próprio).

Bob Marley, Black Star (também falecida), a Sêmile (também desencarnada) Fitz (também no céu dos cachorros) e Willy sempre foram bem cuidados pelo meu pai. Nunca faltaram sanduíches para eles (como viúvo e pensionista, seu Didi sempre gastou parte de sua renda mensal com x-saladas para seus hóspedes-filhos. O Bob Marley sempre preferiu um X-tudo!), nem se interessava por outros tipos de refeições que pudessem lhe garantir mais tempo de vida.

Certa vez, recebi um telefonema de minha mãe falando que Wily (apelido do Jubileu) estava doente. Corri com ele até uma clínica veterinária situada na Avenida Castelo Branco. Diagnóstico: estresse provocado pela bateria (música) que era tocada todos os dias pelo meu irmão Welliton, que é hoje músico de mão cheia, jornalista e advogado.

Depois de medicado, Wily voltou para casa feliz da vida e eu com a certeza de que cachorros (os animais) também têm doenças de gente grande e humana: o estresse é uma delas.

Bob Marley foi com Deus. Terá seu espaço no Paraíso. Nunca mordeu ninguém, nunca fez mal a ninguém, nem fez titica na calçada de nenhum vizinho. Foi carregando com suas perninhas curtas, com o andar ondulante o peso de uma imensa ternura.

Deixou mais triste meu pai, na verdade, mais pai do que avô, um pouco descrente no seu (quase) aniversário de 70 anos. Viúvo, com os filhos distantes, seu Didi perdeu um grande e fiel companheiro. Fica agora o Willy e um outro pretinho que não sei ainda qual o seu nome, e que tornou-se hóspede da casa há pouco tempo.

A residência na Vila Izaura, como dizem, ficou mais triste e perdeu mais uma boca. Resta o consolo de que Bob Marley não morreu de fome ou por ter sido maltratado, mas pela idade, algo inexorável (pequenas partículas de ouro que nos escapam entre os dedos) e que nos levam a um infinito ignorado.

(publicado no jornal Diário da Manhã)

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